segunda-feira, 19 de abril de 2010

as peles do ordeiro

Viva o reitor! Viva a propina máxima! Viva o bispo de Braga! (um neologismo seria de bragas).


Não, não é. Podia ser mas ainda não é. A frase convida o leitor a pensar tratar-se do mais novo grito dos estudantes durante a queima das fitas porém, devido a uma pequena confusão lexical, os estudantes apoiam umas coisas e desbaratam pelas ventas fora outras.

É interessante ver como as instituições universitárias se mostram complacentes com os ritos fascistas que os alunos praticam, muitas vezes debaixo do mesmo tecto onde, acredite-se, se diz existir ensino universitário. Ou será que então, fazendo jus à etimologia da palavra, ensinar-se-ia aí tudo, inclusive a degradação do ser humano, o desprezo, a humilhação dos nossos pares. O que realmente acaba por não ter sentido nenhum é professar praxes em cursos ditos humanistas (ou para ser mais exacto humaniscas). Será essa a humanidade que vêem, talvez.

Assim, com pezinhos de lã, marcha o fascismo entre nós, um fascismo que não é carrancudo, não é antipático, nem arranca unhas com alfinetes por dá cá aquela palha, não senhor. Isso são coisas passadas, agora o fascismo é alegre e divertido, aceite e propagandeado, bebe vinho à mesa e canta modinhas às moças distraídas.

Por isso lanço o repto: Pais, Mães, muito cuidado, se virdes vossos queridos e amados filhos com a cara pintada, cuecas por em cima das calças, um sorriso pacóvio, não tenhais duvidas, está instalado o processo de fascizenação nas vossas crias, é necessário agir com prontidão:
Primeiro, anular qualquer matricula no ensino superior e remeter vossos rebentos à escola primária onde, se querem andar fardados pode ser de bibe e assim já podem cumprir o desejo de pintar sem terem de sujar tudo.
Segundo, vigiai suas actividades, por vezes os pequenos fascistas dizem que vão sair a tomar café e na verdade vão ver filmes pró-fascistas com os amigos como O Crime do Padre Amaro, Sorte Nula, Second Life, A Bela e o Paparazzo, normalmente se apanhados usam a velha desculpa de estarem a apoiar a cultura nacional. Se, por outro lado, se inclinam mais para a máquina de guerra anglo-saxónica é normal encontrá-los em filas intermináveis esperando impacientemente para assistirem aos seus líderes favoritos como Avatar ou O Senhor dos Anéis.
Terceiro, arrecadem qualquer produto alimentar fora de prazo e não lhes confiei o lixo doméstico, ao ouvirdes "deixa estar que eu baixo o lixo" o fascista quererá dizer "deixa estar que eu baixo ao nível do lixo", acabando por dar uso a esses resíduos nas práticas académicas para deleite dos intervenientes. Anexo uma fotografia que vos auxiliará a identificar os pequenos salazares:


Atentai no uso de luvas por parte do executante, actua segundo as mais rígidas normas praxistas em que, por questões higiénicas, não se deve tocar os novos membros até se ter completa certeza de se estar na presença de um facho (normalmente a passagem à fase adulta dá-se pelo surgir de uma penugem em forma quadrada sob o nariz, as mais recentes inovações depilatórias fazem com que este reconhecimento seja cada dia mais difícil de efectuar). Atenção! Há um caso específico em que esta norma não se aplica de todo, o da coacção à prática sexual, aí os indivíduos mascarados (de ambos os sexos) procuram parceiros que por submissão se vêem obrigados a praticar o coito sem fins reprodutivos (o que acaba por ser um tanto incoerente face às suas convicções religiosas de prestar reconhecimento a bispos), isto deve-se em grande medida à incapacidade desses indivíduos encontrarem parceiros de forma natural sendo assim obrigados à coacção, normalmente por via da intoxicação alcoólica, para se satisfazerem. É também usual o recurso a encenações de cariz sexual de modo a desinibir os novos membros de qualquer tipo de auto-estima e amor pelo próprio corpo, como podeis comprovar pelo documento anexo:Por tudo isto não tenhais duvidas, se vossos rebentos cheirarem a comida podre não é por que cozinhem mal, se os ouvirdes chamando de doutores a gente que não sabe ler nem escrever não se trata de modéstia ou humildade mas sim de estupidez, se, acima de tudo, os confrontardes não estranheis que vos digam que não, que os tratam muito bem e que ali são todos iguais, não é o bom senso a falar mas sim a prática unitária e reducionista fascista a actuar. Rogo-vos uma última e esclarecedora prova, se vos sentardes à mesa com vossos filhos e se eles não conseguirem beber um copo de vinho sem ser de golada é prova cabal de que se deu a transformação.

São assim os fascismos, nunca damos por eles até ao momento em que estão no poder e aí já é tarde demais.

terça-feira, 23 de março de 2010

e vai mais um


Numa altura em que lançam o número especulativo de 10,5%, relativo ao desemprego, já que o valor real será bastante superior, basta pensar nas manobras de diversão feitas a partir de projectos como as novas oportunidades para perceber que, na verdade, o desemprego será superior ao mencionado; encontramos um caso de sucesso neste estado calamitoso de coisas, alguém que mostra como se pode conseguir um emprego fazendo simplesmente o que lhe mandam.

Parece que o ex-ministro Mário Lino está a ser estudado pela Cimpor para ser o seu novo chairman (alguém me explica o que é ser estudado? Será que o submetem a exames da quarta classe para ver se o indivíduo sabe um pouco de demografia?).
Ao que parece às pastas ministeriais sucedem grandes louvores em empresas de renome, isto só me leva a crer, não na capacidade dos visados (há exemplos de uma enormidade falta de qualidades), mas que estes ministros já trabalhavam nessas, ou para essas, mesmíssimas empresas nos tempos idos de governo. E, como aliás venho insistindo, nesta ideia dos funcionários políticos, da promiscuidade que se criou, na submissão do poder político ao poder económico, nada mais natural do que olhar para este filho da pátria injusta, este nobre e visionário Mário Lino, que ainda era ministro mas já tão bem ministrava os desígnios da Cimpor, e pensar: "Que bom, menos um português no desemprego, rogo a todos os santos não o ter visto, por aí, perdido aos caixotes".

Faço ainda uma pequena referência às novas oportunidades citadas. Só num país em que uma paupérrima educação é permitida seria possível administrar um projecto como o das novas oportunidades sem contestação social, porque é do senso de todos, dos que leccionam, dos que recebem instrução, de que não se aprende nada nesses cursos, de que apenas se passa o tempo esperando a certificação. E é isto, trocou-se o conhecimento, o valor insubstituível de saber que não se sabe, pelo atestado de acefalia em estado avançado.
Agora, no que tem de ser apontado ao governo em primeiro lugar é que repercussões terá este ensino na generalidade da educação? Pois isto não é um acto novo no serviço educativo, desde há vários anos que a qualidade baixa a ritmo galopante, tanto que hoje se faz uma carreira inteira com ensino superior incluído, sem um mínimo de exigência, já não falo de ética. A qualidade e exigência no ensino superior rivalizam com algumas dessas publicações que se vendem em quiosques, pequenos livrinhos que trazem palavras cruzadas, sopas de letras e, mais recentemente, sudoku.
No outro dia ouvi um dos candidatos a presidente do PSD dizer que as crianças aos 12 anos podem aprender uma profissão, é este o sinuoso caminho que nos querem destinar.
Já que nem todos podem ter as oportunidades (nem os amigos) de Mário Lino, talvez fosse hora de exigir uma educação virada para as capacidades humanas, para a libertação da individualidade; uma educação que não esteja ao serviço dos empresários mas ao dispor das legitimas reivindicações da vontade dos Homens.
Fica o registo de Agostinho da Silva, sobre o que, para si é, educar e instruir.
"Não se trata de profissão, trata-se de arte, trata-se de criação. O Homem não nasce para trabalhar, o Homem nasce para criar, para ser o tal poeta à solta."

sexta-feira, 12 de março de 2010

manifesto pelo cinema português


Um grupo de cineastas portugueses assina um manifesto endereçado ao ministério da cultura. Isto é um facto indelével que, para maior espanto dos envolvidos, a generalidade das pessoas não credibiliza. Não vou sequer falar dos argumentos utilizados pelos que atacam a liberdade de expressão dos cineastas em Portugal, apenas gostaria de dizer, em tom provocatório, que é a opinião que mais convém ao ministério da cultura.

A história do instituto que financia o cinema em Portugal mostra as intenções governativas tomadas em determinadas alturas. A saber, o Instituto Português do Cinema (IPC) é criado no início da década de 70, transformado em Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual (IPACM) em 92, nova mudança para Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) em 98 e, finalmente, como o conhecemos hoje Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).

Que quer isto dizer? Exactamente o mesmo de, aquando das revisões constitucionais, mudar-se ou acrescentar-se texto que pode parecer inócuo mas na verdade direcciona o cumprimento das leis para um nível diferente, exemplo crasso o de acrescentar "tendencialmente" a várias alíneas da constituição, de modo a conseguir que a saúde, a educação, o trabalho, etc, já não sejam direitos gratuitos e universais, mas regalias ao alcance de quem pode.

"E é por isso que desapareceu a arte e o cinema da designação do instituto de cinema. Não tem português nem arte."
João Botelho em "O elogio da dissidência"

De maneira que, segundo os desígnios dos sucessivos governos, apregoa-se que devem ser feitos filmes de formatos "comuns" e "gerais" para que Portugal seja "competitivo" ao nível audiovisual.

O que os doutos ministros da cultura, desde o tempo do Cavaco Silva passando por Guterres, o fugaz mas lancinante Durão Barroso e agora Sócrates, não perceberam ainda é que se falam de cinema estamos num universo e se falam em audiovisual partimos para outro completamente distinto (o desconhecimento talvez se deva ao facto de para se pertencer a órgãos como o ministério da cultura ou o instituto do cinema não seja necessário perceber nada do assunto e, se possível, não querer perceber). Da ministra Gabriela Canavilhas não sei a opinião sobre o assunto, espero que pelo menos a tenha; contudo penso que gosta de zarzuelas.

"O facto do cinema ter estado lá [campos de concentração nazis] marcou-o para sempre indelevelmente. Mas a consciência dessa presença é algo que se forma constantemente. É isso a cinefilia: a certeza do que separa e isola o cinema de tudo o resto, isto é, o facto das suas imagens não poderem escapar a «terem lá passado uma vez», de terem participado da construção dessa realidade, de muitas maneiras diferentes, nenhuma delas, porém, completamente inocente. O cinema tem, portanto, uma consciência/uma história que nenhuma outra prática audiovisual possui, a começar pela televisão. E são os olhos desta consciência que, verdadeiramente, nos olham em cada projecção. Mesmo que os não queiramos ver."
João Mário Grilo in "As Lições do Cinema"

Por tal, mais que palavras, são os próprios filmes portugueses que demonstram o quão erradas andam as políticas culturais. Poucas serão as áreas onde o vínculo português está tão marcado como é o caso do cinema dos últimos trinta anos. Em ambientes extremamente complicados e por vezes bastante hostis, foi-se criando uma quantidade de filmes admiráveis que hoje fazem parte, com certeza, de um cinema universal. Portugal é (não sei por quanto tempo) um dos raros países que se pode afirmar possuidor de um cinema específico e não generalizado, isto graças à liberdade dos seus autores e à sua integridade ética.

Termino com um outro início, a sugestão de visionamento do documentário "Cette Télévision est la Vôtre", de Mariana Otero, filme que aborda, precisamente, as questões éticas da televisão SIC. Não muito famoso em Portugal e extremamente difícil de encontrar (porque será?), o filme é de uma nitidez incrível e revela-nos a pobreza que existe quando a prioridade não é a qualidade mas o capital. Assistimos àquilo pelo que fazem passar o espectador: por acéfalo, e compreende-se bem a relação promíscua entre comunicação e controlo, entre quem detém os meios e que fins pretende da sua utilização. Mais do que eu possa dizer está numa crónica de Francisco Costa, publicada no jornal Avante!, chamada "Em português nos enojamos".
Lamento não possuir o filme, contudo deixo um troço que circula pela internet e que pode despertar o interesse de alguém ou, no mínimo, elucidar sobre o teor do filme de Mariana Otero.

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quarta-feira, 10 de março de 2010

ministério da tortura


Tinha olvido, confesso, que o gosto tauromáquico, pelo menos apregoado a bandeiras despregadas, já teria concluído o seu processo migratório desde o CDS até bandas do Ps. Nunca compreendi muito bem o porquê das assistências dessas matanças serem formadas, sobretudo, por monárquicos cantadores de fado e indivíduos de uma pureza ariana que só é possível atingir após a aplicação regular de coloração capilar adequada e exposição diária a solário (recomendações feitas pelo terceiro reich da cosmética contemporânea).

Era-me completamente alheio o actual ministrar de práticas miscelâneas de conspurcação e gratuitidade lasciva, pelo menos com o logro da se lhe chamar cultura; isto tudo com sérios perigos e implicações para a saúde pública.
Já não me recordava como certos políticos nos podem dar uma ideia de como é viver no século XVIII. Numa altura em que, por exemplo, a Catalunha está a pensar proibir de todo as touradas, cá no burgo tenta-se institui-las.

Para terminar, desconhecia de todo a devassa Gabriela Canavilhas, estranhava ministros da cultura aperaltados com folhos e lantejoulas mais castanholas em riste, suponha eu que esta forma de histerismo estaria em vias de extinção, pelos vistos não. Estão abertas as portas da imundice e que mais esperar deste camafeu? A julgar pela contaminação venérea a que sobre expõe a cultura, ainda lhe passará pela moleirinha propor as práticas de mutilação feminina ou autos-de-fé como actividades tradicionais de cultura.

Ao que parece equivoquei-me, ou melhor, esqueci-me da qualidade política dos ministros da cultura, por isso a minha admiração. O pior de tudo isto é somente que a cultura realmente perde, ou não teremos todos em mente medidas mais oportunas e importantes para a cultura do que estes carnavais de morte?

segunda-feira, 8 de março de 2010

cala-te boca ou o azedume de uma tarde de verão

A haver estranhos factos, na história recente de Portugal, estarão eles em grande número, e, sem dúvida, na vida política do país; com maior precisão, desde o período revolucionário a esta parte. E são eles factos passíveis de análise metafísica, mutações na ordem humana que, por padecerem de verosimilhança, quiçá, sejam eles provenientes de uma outra esfera astral, de distantes realidades informes, e, como tal, só o auxílio das ciências mais obscuras nos pode encontrar explicação para tais bizarrices.
Ou então façamos uma leitura mais terrena e aceitemos estes indivíduos, de que vou falar em seguida, tomados apenas pelo lânguido tlintar do vil carcanhol que lhes torna as feições.
Os meses que procederam Abril de 74 são marcados por uma experiência sígnica capaz de abater de profunda depressão o semiólogo mais esforçado, para isso bastaria-lhe entrar numa sede do PSD por essa altura e dar-se de cara com um Marcelo Rebelo de Sousa de barbas e um "Povo Livre" na mão.

Tão irreversível quanto a imberbe do professor, o socialismo mencionado é prova dessa outra época, tão bem descrita por Álvaro Cunhal no capítulo "Todos pelo Socialismo" do livro A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril. Uma época em que a escalada ao poder (e o ataque à revolução) se fez por intermédio da mentira, subsidiada pelos sempre-presentes-em-assuntos-para-os-quais-não-são-vistos-nem-achados Estados Unidos da América (já lá iremos mais adiante).

Fiquemos ainda com o testemunho de alguém que, fazendo jus a honrar a tradição marítima portuguesa, está sempre disponível a abandonar o barco, e que hoje em dia navega a Europa liberalista. É também pessoa de, em algum momento histórico, encarnar um D. Sebastião e ir brincar às guerras santas com os seus amigos. De penar que Portugal fique do mesmo modo refém, desta vez não de Espanha, mas sim, da história por essa ocupação hedionda e de intuitos nada duvidosos. De realçar, ainda que fosse desnecessário, que a população portuguesa nunca apoiaria a invasão militar se, sobre ela, fosse questionada; claro que à boa maneira democrática tomou a decisão como quem toma chá.



Para que não me acusem de parcialidade e porque os quero tratar a todos por igual, deixo aqui mais uns documentos da incongruência de outras marionetas que, se ligados a outros partidos, são afectos ao mesmo liberalismo, à mesma política submissa do capital.




Este senhor, que vimos recentemente vagabundear por um prostíbulo político na zona do Rato, tem direito a uma fotografia de família que lhe ilustre (para ele será lustre) o seu passado democrático.
Não sei de que sociedade sem classes fala, mas que a sua acção política contribuiu para uma sociedade sem classe lá isso é verdade. Talvez ainda estivesse em convalescença devido à queda do regime quando proferiu esta barbaridade.

E, talvez, o leitor admirado com as minhas ásperas palavras, se pergunte o porquê chamar alcoice à sede do Ps, pois bem, dá-se o facto, recorrente, de vários filhos da política lá irem parar, pessoas honradíssimas, que tanto defendem os trabalhadores e o povo como o grande capital e a exploração. Atente-se neste primor, nesta coerência ideológica, quando comparada com o Vital Moreira dos dias de hoje.



Lá está, andava à procura do socialismo, pena que o foi encontrar na sua forma distorcida e corrompida nos braços do José Sócrates que, como bem se sabe, pensa que socialismo é entregar os bens produtivos a Américo Amorim e conceder empreitadas de somas avultadas às empresas onde trabalham ex-ministros do Ps. Isto à semelhança da tradição a que o Ps nos habituou.

sábado, 6 de março de 2010

vamos lá ser bons humaniscas

Aprofunda-se a crise e, para gáudio de alguns, a pobreza vem à tona, por isso, não faltam por aí causas para abraçar, mas ao longe.
Sempre me provocou tremendo espanto o devoto que, ajudando o outro, não vê que se ajuda a si mesmo. Ou haverá alguma maneira de sentirmos o mundo que não a de através de nós próprios?

"Nunca percorri estrada

que não fosse a de egoísmo

bem andada

e com cinismo

mas cheguei agora ao fim

não amo os outros por eles

mas por mim"


Agostinho da Silva


É por isso que escrevo hoje. Por me encontrar diariamente, e que infortúnio, amiúde, com tantos que se julgam superiores porque se dizem, em auxílio do próximo.
Um exemplo presente é o do Haiti em que tantos foram para aí exercer a dita ajuda humanitária. Pois será, humanitária porque é o que querem fazer, pois sentem a necessidade de ir e, ficando, sentir-se-iam mal. Então o que os molesta não é, de certeza, o sofrimento alheio, que esse julgo impossível que sintam, mas a sua própria insatisfação. Mas mesmo assim estes, os peregrinos humaniscas, são os que me incomodam menos, já que se vão embora e não ouço os seus trejeitos em mal praticarem o bem.

Incomodam-me mais aqueles que, por exemplo, nas filas de supermercado, dão, pobres deles, um quilito de arroz a não sabem bem quem. Nem querem saber, já está dado e podem seguir a sua existência com a certeza dos bons humaniscas que são. Estes sim provocam-me convulsos arrepios, pois a caridade apenas perpetua a pobreza. É a boa maneira democrática-cristã que hoje está instituída e vulgarizada como bom valor por quase toda a sociedade. Senão, façamos a análise de uma outra forma, se a todos esses que se dignam a dar uma migalha lhes fosse proposto um nivelamento de forma a não existirem pobres e, com isso, ficassem eles sem certas regalias que hoje tanto prezam, aceitariam? Duvido muito, ou melhor, poucos o fariam.
Mas se o meu ponto de vista pode parecer imoral, faça o leitor o desafio de se pensar pobre e imaginar, nessa situação, o que desejaria: a caridade ou uma solução definitiva do seu mal estar?
Pois bem, esse é o problema, é que muitos querem ajudar mas poucos querem, de facto, mudar alguma coisa. Será por que se sentem bem assim, como bons samaritanos sem se darem conta da hipocrisia que os seus actos acarretam.

Podia também falar do mercantilismo da caridade, que nessas recolhas de supermercado ficam as grandes superfícies bem vistas quando na verdade apenas aproveitam essa máscara para venderem mais. Senão, já que estão todos de tão boa fé, que abram as portas e deixem levar quem nada tem.
Fazem-me lembrar esses artistas [sic] que, por artimanha, criaram essa nefasta coisa chamada "live aid". E ainda há quem diga bem destas iniciativas, que pense que sim senhor, que os artífices (recuso-me a chamá-los de artistas) querem mesmo ajudar quem não tem os mínimos para uma sobrevivência digna.

Hoje os famintos servem para vender cd's, ou camisolas como no caso da Benetton. É desumano apropriarem-se da miséria alheia para benefício próprio. Posso ainda citar uma situação que talvez no futuro seja apelidada de exploração infantil, ao invés de boa acção como é hoje, a dessas pessoas do star system que adoptam crianças, oriundas de países com sérias dificuldades, para realçarem as suas carreiras, felizmente algumas instituições de direitos humanos já abriram os olhos para a verdadeira cara destes malfeitores.
Num mundo de desperdício (e que desperdício de mundo!) talvez fosse hora de pensar o outro com igualdade e não com caridade.


José Barata-Moura

quarta-feira, 3 de março de 2010

o funcionário joaquim

Diz o povo que mais vale tarde do que nunca, por isso, decidi escrever sobre as calamitosas acções que o governo local tem levado a cabo nessa terra donde provenho, a Guarda.
E, como para falar (se tivesse paciência) de todas as tropelias e artimanhas que estes executivos têm feito teria de adentrar-me de tal forma em tantos e diversificados temas, que tal me levaria a regurgitar compulsivamente, decidi, posto isto, falar apenas do caso da muralha da cidade e a leviandade com que se prostituiu essa zona da cidade; em prol, dizem, do progresso, da inovação e das mais profundas reivindicações e necessidades da população: a construção de um "shopping".
Isso, repito, dizem por ai, pois eu digo que foi em função dos interesses económicos, da selvajaria imobiliária, exemplo crasso da servidão e submissão política aos grandes grupos argentários.
Para esta reflexão não tenho mais que expor os argumentos desses doutos da evolução, ora vejamos:

«(...)o presidente da Câmara da Guarda, Joaquim Valente, disse que o projecto "é importantíssimo para a Guarda”.
Salientou que, para além da criação de novos postos de trabalho “é uma oportunidade para introduzir pessoas no Centro Histórico, que vão alimentar as actividades e a economia” locais.
Joaquim Valente considerou o equipamento como um bom exemplo em termos de requalificação e valorização de uma zona da cidade que estava abandonada.»
in Nova Guarda 21-02-08

O que me chama primeiro a atenção é o facto do funcionário Joaquim não conhecer, ou fazer vista grossa à distinção entre trabalho e precariedade, pois este investimento não gere postos de trabalho mas sim instabilidade, salários ridículos e contratos temporários (muitos em part-time que serão ocupados, por exemplo, por estudantes do IPG ou jovens, alguns até qualificados mas, infelizmente, a câmara não criou condições para eles se empregarem, e, mais recentemente, temos os desempregados da Delphi mesmo a jeito da exploração febril deste grande investimento), a tudo isto já nos habitou, sobretudo com o Código do Trabalho, o Ps (note-se a minúscula como figura de estilo).

Vejo também a sintomática questão de esquizofrenia da qual padece o executivo, então quem será responsável pelo abandono do centro histórico? Ou façamos a pergunta ao invés, quem são os responsáveis pela construção histérica e desenfreada que descaracterizou a Guarda por completo em vez de se apostar na dinamização dessa zona? (mas isto são contas de um outro rosário).

Já agora, convém não esquecer o programa Polis, que preparou a zona para o "shopping", como o fez, também, para o hotel da avenida.
O mais fastidioso disto tudo é a usurpação do património para regozijo de uns poucos, pois transformou-se a muralha num adereço do mamarracho, como se essa existisse para o abrilhantar, isto, para não falar da polémica que ainda se mantém por lá, com a contígua construção particular de um conhecido empreiteiro local, à boa maneira feudal que parece fazer escola na Guarda enquanto a câmara lhes faz escolta.

Enoja-me ainda o facto da população pouco ou nada se interessar por estas matérias, estando mais ocupada em deleitar-se neste espírito consumista (e consumidor, já que penso que consumir é, de certo modo, consumir-se) do que em questionar a justeza destas acções.
Mas se a gente do burgo, funestamente reaccionária e obediente, se está nas tintas para estas chatices, que dizer do IPPAR? Bem, esta entidade "independente" aprovou o projecto, o que, a mim em particular, nada me choca, já que a sua existência, como a de mais entidades reguladores, ditas "independentes" (não sei de quê ou de quem), serve simplesmente para perpetuar a hegemonia das empresas nas decisões políticas; pois agora já não se pode culpar o executivo da decisão, aliás a resposta da câmara é exactamente essa: "O IPPAR aprovou."

Para acabar proponho que o grupo FDO imobiliária e os outros grupos económicos distingam o funcionário Joaquim com um título honorário, pois parece-me assaz evidente que é para eles que anda a trabalhar, isto porque ainda não é permitido às empresas pagarem um soldo ao dirigentes políticos em funções (senão veja-se o exemplo dos exemplares Jorge Coelho ou Pina Moura).
Isto faz-me lembrar esse livro do Saramago em que as pessoas começam a habitar dentro dos centros comerciais, pouco falta convenhamos.


abjecção inaugural

Inauguro este blog com o texto, que espero, explicativo do porquê da abertura deste espaço. Não é que o mote seja somente o cinema mas sim a consciência, essa, tão bem expressa pelas palavras de Serge Daney.







"Entre os filmes que nunca vi, não estão apenas Outubro, Le Jour se Léve ou Bambi, há também esse obscuro Kapo. Filme sobre os campos de concentracão, rodado em 1960 pelo italiano de esquerda Gillo Pontecorvo, Kapo não deixou marcas na história do cinema. Serei eu o único a nunca o ter esquecido, apesar de nunca o ter visto? É que eu nunca vi Kapo mas, ao mesmo tempo, vi-o. Vi-o porque alguém — através das palavras — mo mostrou. Este filme, cujo título, como uma senha, acompanhou toda a minha vida de cinema, só o conheço através de um curto texto: a crítica que fez Jacques Rivette em Junho de 1961 nos Cahiers du Cinéma. Era o número 120, o artigo chamava-se «Da abjecção», Rivette tinha trinta anos e eu dezassete. Acho que até aí nunca tinha sequer pronunciado a palavra «abjecção» em toda a minha vida.
No seu artigo, Rivette não contava o filme; contentava-se, numa frase, em descrever um plano. Essa frase gravou-se-me na memória e dizia o seguinte: «Vejam em Kapo, o plano em que Riva se suicida, atirando-se sobre o arame farpado electrificado: o homem que decide fazer, nesse momento, um travelling para reenquadrar o cadáver em contra-picado, tendo o cuidado de colocar a mão erguida num ângulo preciso do seu enquadramento final, este homem só tem direito ao mais profundo dos desprezos». Assim um simples movimento de câmara podia também ser o movimento que não se devia fazer. Aquele que deveria — de modo evidente — ser abjecto fazer. Mal tinha lido estas linhas, soube que o seu autor tinha absolutamente razão.
Abrupto e luminoso, o texto de Rivette permitia-me descrever esse rosto da abjecção. A minha revolta tinha encontrado por fim palavras para se dizer.
Mas havia mais. É que essa revolta era acompanhada por um sentimento menos claro e, sem dúvida, menos puro: O reconhecimento aliviado de ser esta a minha primeira certeza de futuro crítico. Ao longo dos anos, com efeito, «o travelling de Kapo» seria o meu dogma portátil, o axioma que nunca se discutia, o ponto final de qualquer debate. Com alguém que não sentisse imediatamente a abjecção do «travelling de Kapo», eu não teria, definitivamente, nada a ver, nada a partilhar."

Serge Daney (1944-1992)
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