quarta-feira, 3 de março de 2010

abjecção inaugural

Inauguro este blog com o texto, que espero, explicativo do porquê da abertura deste espaço. Não é que o mote seja somente o cinema mas sim a consciência, essa, tão bem expressa pelas palavras de Serge Daney.







"Entre os filmes que nunca vi, não estão apenas Outubro, Le Jour se Léve ou Bambi, há também esse obscuro Kapo. Filme sobre os campos de concentracão, rodado em 1960 pelo italiano de esquerda Gillo Pontecorvo, Kapo não deixou marcas na história do cinema. Serei eu o único a nunca o ter esquecido, apesar de nunca o ter visto? É que eu nunca vi Kapo mas, ao mesmo tempo, vi-o. Vi-o porque alguém — através das palavras — mo mostrou. Este filme, cujo título, como uma senha, acompanhou toda a minha vida de cinema, só o conheço através de um curto texto: a crítica que fez Jacques Rivette em Junho de 1961 nos Cahiers du Cinéma. Era o número 120, o artigo chamava-se «Da abjecção», Rivette tinha trinta anos e eu dezassete. Acho que até aí nunca tinha sequer pronunciado a palavra «abjecção» em toda a minha vida.
No seu artigo, Rivette não contava o filme; contentava-se, numa frase, em descrever um plano. Essa frase gravou-se-me na memória e dizia o seguinte: «Vejam em Kapo, o plano em que Riva se suicida, atirando-se sobre o arame farpado electrificado: o homem que decide fazer, nesse momento, um travelling para reenquadrar o cadáver em contra-picado, tendo o cuidado de colocar a mão erguida num ângulo preciso do seu enquadramento final, este homem só tem direito ao mais profundo dos desprezos». Assim um simples movimento de câmara podia também ser o movimento que não se devia fazer. Aquele que deveria — de modo evidente — ser abjecto fazer. Mal tinha lido estas linhas, soube que o seu autor tinha absolutamente razão.
Abrupto e luminoso, o texto de Rivette permitia-me descrever esse rosto da abjecção. A minha revolta tinha encontrado por fim palavras para se dizer.
Mas havia mais. É que essa revolta era acompanhada por um sentimento menos claro e, sem dúvida, menos puro: O reconhecimento aliviado de ser esta a minha primeira certeza de futuro crítico. Ao longo dos anos, com efeito, «o travelling de Kapo» seria o meu dogma portátil, o axioma que nunca se discutia, o ponto final de qualquer debate. Com alguém que não sentisse imediatamente a abjecção do «travelling de Kapo», eu não teria, definitivamente, nada a ver, nada a partilhar."

Serge Daney (1944-1992)

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