Um grupo de cineastas portugueses assina um manifesto endereçado ao ministério da cultura. Isto é um facto indelével que, para maior espanto dos envolvidos, a generalidade das pessoas não credibiliza. Não vou sequer falar dos argumentos utilizados pelos que atacam a liberdade de expressão dos cineastas em Portugal, apenas gostaria de dizer, em tom provocatório, que é a opinião que mais convém ao ministério da cultura.
A história do instituto que financia o cinema em Portugal mostra as intenções governativas tomadas em determinadas alturas. A saber, o Instituto Português do Cinema (IPC) é criado no início da década de 70, transformado em Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual (IPACM) em 92, nova mudança para Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) em 98 e, finalmente, como o conhecemos hoje Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).
Que quer isto dizer? Exactamente o mesmo de, aquando das revisões constitucionais, mudar-se ou acrescentar-se texto que pode parecer inócuo mas na verdade direcciona o cumprimento das leis para um nível diferente, exemplo crasso o de acrescentar "tendencialmente" a várias alíneas da constituição, de modo a conseguir que a saúde, a educação, o trabalho, etc, já não sejam direitos gratuitos e universais, mas regalias ao alcance de quem pode.
"E é por isso que desapareceu a arte e o cinema da designação do instituto de cinema. Não tem português nem arte."
João Botelho em "O elogio da dissidência"
De maneira que, segundo os desígnios dos sucessivos governos, apregoa-se que devem ser feitos filmes de formatos "comuns" e "gerais" para que Portugal seja "competitivo" ao nível audiovisual.
O que os doutos ministros da cultura, desde o tempo do Cavaco Silva passando por Guterres, o fugaz mas lancinante Durão Barroso e agora Sócrates, não perceberam ainda é que se falam de cinema estamos num universo e se falam em audiovisual partimos para outro completamente distinto (o desconhecimento talvez se deva ao facto de para se pertencer a órgãos como o ministério da cultura ou o instituto do cinema não seja necessário perceber nada do assunto e, se possível, não querer perceber). Da ministra Gabriela Canavilhas não sei a opinião sobre o assunto, espero que pelo menos a tenha; contudo penso que gosta de zarzuelas.
"O facto do cinema ter estado lá [campos de concentração nazis] marcou-o para sempre indelevelmente. Mas a consciência dessa presença é algo que se forma constantemente. É isso a cinefilia: a certeza do que separa e isola o cinema de tudo o resto, isto é, o facto das suas imagens não poderem escapar a «terem lá passado uma vez», de terem participado da construção dessa realidade, de muitas maneiras diferentes, nenhuma delas, porém, completamente inocente. O cinema tem, portanto, uma consciência/uma história que nenhuma outra prática audiovisual possui, a começar pela televisão. E são os olhos desta consciência que, verdadeiramente, nos olham em cada projecção. Mesmo que os não queiramos ver."
João Mário Grilo in "As Lições do Cinema"
Por tal, mais que palavras, são os próprios filmes portugueses que demonstram o quão erradas andam as políticas culturais. Poucas serão as áreas onde o vínculo português está tão marcado como é o caso do cinema dos últimos trinta anos. Em ambientes extremamente complicados e por vezes bastante hostis, foi-se criando uma quantidade de filmes admiráveis que hoje fazem parte, com certeza, de um cinema universal. Portugal é (não sei por quanto tempo) um dos raros países que se pode afirmar possuidor de um cinema específico e não generalizado, isto graças à liberdade dos seus autores e à sua integridade ética.
Termino com um outro início, a sugestão de visionamento do documentário "Cette Télévision est la Vôtre", de Mariana Otero, filme que aborda, precisamente, as questões éticas da televisão SIC. Não muito famoso em Portugal e extremamente difícil de encontrar (porque será?), o filme é de uma nitidez incrível e revela-nos a pobreza que existe quando a prioridade não é a qualidade mas o capital. Assistimos àquilo pelo que fazem passar o espectador: por acéfalo, e compreende-se bem a relação promíscua entre comunicação e controlo, entre quem detém os meios e que fins pretende da sua utilização. Mais do que eu possa dizer está numa crónica de Francisco Costa, publicada no jornal Avante!, chamada "Em português nos enojamos".
Lamento não possuir o filme, contudo deixo um troço que circula pela internet e que pode despertar o interesse de alguém ou, no mínimo, elucidar sobre o teor do filme de Mariana Otero.
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A história do instituto que financia o cinema em Portugal mostra as intenções governativas tomadas em determinadas alturas. A saber, o Instituto Português do Cinema (IPC) é criado no início da década de 70, transformado em Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual (IPACM) em 92, nova mudança para Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) em 98 e, finalmente, como o conhecemos hoje Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).
Que quer isto dizer? Exactamente o mesmo de, aquando das revisões constitucionais, mudar-se ou acrescentar-se texto que pode parecer inócuo mas na verdade direcciona o cumprimento das leis para um nível diferente, exemplo crasso o de acrescentar "tendencialmente" a várias alíneas da constituição, de modo a conseguir que a saúde, a educação, o trabalho, etc, já não sejam direitos gratuitos e universais, mas regalias ao alcance de quem pode.
"E é por isso que desapareceu a arte e o cinema da designação do instituto de cinema. Não tem português nem arte."
João Botelho em "O elogio da dissidência"
De maneira que, segundo os desígnios dos sucessivos governos, apregoa-se que devem ser feitos filmes de formatos "comuns" e "gerais" para que Portugal seja "competitivo" ao nível audiovisual.
O que os doutos ministros da cultura, desde o tempo do Cavaco Silva passando por Guterres, o fugaz mas lancinante Durão Barroso e agora Sócrates, não perceberam ainda é que se falam de cinema estamos num universo e se falam em audiovisual partimos para outro completamente distinto (o desconhecimento talvez se deva ao facto de para se pertencer a órgãos como o ministério da cultura ou o instituto do cinema não seja necessário perceber nada do assunto e, se possível, não querer perceber). Da ministra Gabriela Canavilhas não sei a opinião sobre o assunto, espero que pelo menos a tenha; contudo penso que gosta de zarzuelas.
"O facto do cinema ter estado lá [campos de concentração nazis] marcou-o para sempre indelevelmente. Mas a consciência dessa presença é algo que se forma constantemente. É isso a cinefilia: a certeza do que separa e isola o cinema de tudo o resto, isto é, o facto das suas imagens não poderem escapar a «terem lá passado uma vez», de terem participado da construção dessa realidade, de muitas maneiras diferentes, nenhuma delas, porém, completamente inocente. O cinema tem, portanto, uma consciência/uma história que nenhuma outra prática audiovisual possui, a começar pela televisão. E são os olhos desta consciência que, verdadeiramente, nos olham em cada projecção. Mesmo que os não queiramos ver."
João Mário Grilo in "As Lições do Cinema"
Por tal, mais que palavras, são os próprios filmes portugueses que demonstram o quão erradas andam as políticas culturais. Poucas serão as áreas onde o vínculo português está tão marcado como é o caso do cinema dos últimos trinta anos. Em ambientes extremamente complicados e por vezes bastante hostis, foi-se criando uma quantidade de filmes admiráveis que hoje fazem parte, com certeza, de um cinema universal. Portugal é (não sei por quanto tempo) um dos raros países que se pode afirmar possuidor de um cinema específico e não generalizado, isto graças à liberdade dos seus autores e à sua integridade ética.
Termino com um outro início, a sugestão de visionamento do documentário "Cette Télévision est la Vôtre", de Mariana Otero, filme que aborda, precisamente, as questões éticas da televisão SIC. Não muito famoso em Portugal e extremamente difícil de encontrar (porque será?), o filme é de uma nitidez incrível e revela-nos a pobreza que existe quando a prioridade não é a qualidade mas o capital. Assistimos àquilo pelo que fazem passar o espectador: por acéfalo, e compreende-se bem a relação promíscua entre comunicação e controlo, entre quem detém os meios e que fins pretende da sua utilização. Mais do que eu possa dizer está numa crónica de Francisco Costa, publicada no jornal Avante!, chamada "Em português nos enojamos".
Lamento não possuir o filme, contudo deixo um troço que circula pela internet e que pode despertar o interesse de alguém ou, no mínimo, elucidar sobre o teor do filme de Mariana Otero.
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